Pode ser que muita gente discorde e até mesmo vire a cara
para o assunto, mas novela brasileira é um produto nacional de grande apelo
popular, de qualidade técnica reconhecida e, muitas vezes, de altíssima
criatividade. Não podemos negar que se estamos numa roda de amigos, mesmo sendo
ela toda masculina, o tema novela volta e meia aparece, seja falando de algum
personagem, de alguma terra exótica ou de certas invenções ou maluquices que os
autores e produtores resolvem encampar para, literalmente, verem no que vai
dar. Exemplo notório dessas alucinações são as sandices imaginativas
perpetradas em uma novela da Record que atendia pelo singelo nome de “Os Mutantes:
Caminhos do Coração”, exibida em 2008, cujo enredo tresloucado formado por
replicantes meliantes mutantes vivos-mortos milhões de brasileiros e eu jamais
entendemos.
Haghia Sofia, Istambul-Por Sávio Siqueira
A novela Salve Jorge, de
Glória Perez, que acaba de acabar, trouxe à baila um assunto bastante atual,
sério e muitas vezes invisibilizado, o tráfico internacional de pessoas, além
de, em termos de cenários e possíveis enlaces e viagens (inter)culturais, a
Turquia, esse país, para muitos de nós desconhecido, e, não raramente, e de
forma errônea, inclusive na geografia, singularizado como parte daquilo que nos
acostumamos a chamar de Médio Oriente, apenas porque a maioria de sua população
é muçulmana. Foi mais uma novela desta autora orientada por uma fórmula antiga
que, mesmo encarnando estereótipos desgastados, desafiando os obstáculos do
tempo e da distância (lembremos de América
– Miami era quase da cozinha, O Clone
– o Marrocos era ali do lado, e Caminho
das Índias – Mumbai nunca esteve tão perto, era um pulo!), chamou a atenção
por trazer como pano de fundo aspectos culturais instigantes ou situações
polêmicas como a imigração ilegal de brasileiros para os EUA, a posição
inferiorizada da mulher nas sociedades islâmicas e, no caso da Índia, o difícil
entendimento por parte da sociedade ocidental da estrutura de castas, onde, até
hoje, os dalits são vistos como
intocáveis, a escória da base da pirâmide.
Salve Jorge, com sua ponte aérea
Morro do Alemão/Rio de Janeiro-Istambul/Capadócia, dentre tantas doideiras,
mostrou que esse pessoal de novela, por levar os ditames da atual globalização
a extremos, deveria realmente começar a ter seus textos classificados como
ultrarrealismo fantástico, talvez. Por conta do dinamismo e da rapidez da
imagética, os nossos noveleiros têm exagerado. E Glória Perez, neste pormenor,
é pioneira. Nesta novela, além de conceber dezenas de personagens absolutamente
inúteis e totalmente ‘sem noção’, a autora se suplantou em muitos aspectos no
tocante a que Turquia apresentar aos seus telespectadores. Excetuando as lindas
e fantásticas imagens, todas, garanto, sem qualquer possibilidade de maquiagem,
a novela revelou uma Turquia parcial e absolutamente caricata que, para muita
gente, nada mais é que um atrativo para um bando de ignorantes classe média
resolverem rumar para lá apenas para conhecer o cenário por onde Morena, Theo e a gangue de malfeitores formado por Lívia, Russo e Wanda, além do guia turístico
Ziah, com suas mulheres desocupadas, perambularam. Bom para o turismo da
Turquia, sem sombra de dúvidas, uma das indústrias mais bem organizadas daquela
terra de tanta história e tantos mistérios.
Mas vamos às pequenas curiosidades. Para
começar, a ignorância sobre este país reinava inclusive entre aqueles atores
que lá estiveram para as gravações. Lembro que na noite de lançamento da
novela, o pessoal do CQC, do lado de fora do evento, perguntava a vários dos
artistas qual era a capital da Turquia e mais de um respondeu Istambul. Sequer
se deram ao trabalho de ao menos descobrir que a atual capital da velha
Constantinopla é Ankara. A Turquia de Salve Jorge, pasmemos, fala português
carioca, com direito a umas incursões ridículas do idioma local e as
repetitivas fórmulas comunicativas como Merhaba
(Olá!) e Güle Güle (Tcahu!). Isso sem
falar nos mais fartos e grotescos exemplos de inverossimilhança no tocante a
vários aspectos.
A título de exemplo, tomemos as
distâncias entre o Brasil e Turquia, além das viagens internas para a
Capadócia. Para se chegar a Istambul sem escalas, há um voo direto que parte de
São Paulo apenas com duração de 12 horas. A passagem ida e volta não sai por
menos de 1,800 dólares. A delegada Helô, sua filha patricinha, seu genro inútil
e seu ex-marido Stênio, Lívia, Wanda, Russo, Mustafá, Berna, Aisha e por aí vai
foram e voltaram pelos menos umas dez vezes para lá e para cá e em tempo recorde, desconsiderando, nada mais
nada menos, que um fuso horário de 6 ou 7 horas em relação ao Brasil,
dependendo do período em que se viaja para o país que marca o fim da Europa e o
início da Ásia ou vice-versa. Isso sem falar nas várias vezes em que a trupe
bandida de Lívia rebocou de jatinho do Rio de Janeiro para a Turquia uma morena
amarrada, sem direito a sequer ir ao banheiro ou a sua filhinha que foi, no último
capítulo, parar nas mãos de uns camponeses turcos nas montanhas da Capadócia. Isso
é que é globalização: do Morro do Alemão para um morro turco. Viva a
tresloucada imaginação de Glória Perez!
Para quem está em Istambul, a maneira
mais fácil e rápida de se chegar à Capadócia, que é uma região da Turquia e não
uma cidade como a novela deixa transparecer, é voar para locais como Antália ou
Kayseri, e de lá seguir para os vilarejos de
carro, táxi ou ônibus turístico. Só que cada voo para esses pontos internos da
Turquia dura, em média, uma hora, ou seja, uma viagem de Salvador para Recife
de avião. Na alucinação de Glória Perez, Ziah e seus amigos trabalhavam no
Grand Bazar em Istambul até o final do dia e depois seguiam tranquilamente de
carro para a Capadócia, chegando ainda de dia, como se fosse uma viagem de
alguns minutos. Bobagem ficar remoendo este preciosismo, mas seria interessante
que esses autores, mesmo encravados nas suas doideiras ficcionais, não abusassem
do distanciamento do real que, no caso de Perez, ao tratar de temas sociais, tenta apresentar seu texto como um retrato fiel do mundo em que vivemos. Fideliza algumas coisas e fantasia outras tantas. Esta é a fórmula da autora.
A Mesquita Yeni, Istambul-Por Sávio Siqueira
Salve Jorge, com sua
trama abilolada, ainda que de forma artificial, mostrou um alemão próximo do
real, mas esqueceu de explorar as riquezas histórico-culturais da Turquia, hoje
um país que, embora esteja fora da União Europeia, cresceu nos últimos anos a
uma média de 7%. Seus personagens não se interessaram por História, não se viu
um diálogo sobre a velha Constantinopla, entrou-se em locais como a Hagia
Sophia, um santuário emblemático encravado no coração de Istambul, sem sequer
falar um pouco da sua importância para os assuntos religiosos daquele povo. Tudo,
como sempre, ficou no nível do superficial, como se fazendo propaganda para os brasileiros
classe média que viram ali um desvio de rota de Miami para um novo polo de
sacolagem. Nada mais que isso, pois, infelizmente, turismo cultural nunca foi o nosso forte.
Em suma, novela é
novela e existe para nos divertir. A inegável qualidade estética de nossas
produções, volta e meia, descamba para situações inusitadas, tendo Salve Jorge, ultimamente, neste aspecto,
se superado. Personagens em excesso, um núcleo turco em que praticamente não se
fazia nada, além de dançar, sorrir e comer, culminando com um esdrúxulo triângulo
amoroso entre o guia Ziah, uma carioca desocupada que chega a aprender a dançar
como uma turca e uma turca que fala português como qualquer um de nós que, a
duras penas, percebeu que dor de corno dói do mesmo jeito em qualquer lugar do
planeta. Glória Perez, no seu merecido descanso, deverá colher os louros de
suas aventuras imaginativas e, com certeza, pensará que contribuiu para levar
mais e mais brasileiros a um país misterioso como a Turquia. Bom para eles. Mas
numa avaliação mais acurada, um dia, a autora saberá que, mais uma vez, subiu
ao panteão das noveleiras que, com suas histórias tresloucadas, contribuíram para
a consolidação da ignorância geral e irrestrita dos nossos viajantes globais
oriundos destas terras tupiniquins.
Por conta disso, não
custa lembrar, podem ter certeza, que nos próximos anos, só vai dar brasileiro
doido para andar de balão na Capadócia, esperando sair correndo pelas montanhas
da Turquia e se deparar com um monte de dervishes
rodopiando em pleno pôr do sol. Isso sem falar na potencialização de uma doença
brasileira global que agora mudará de cor e valor – compras – muitas vezes de
coisas inúteis e pouco práticas. Sacolas vão voar. Salve Jorge acabou. Sobrevivemos às suas gafes e seringadas. Espero
que a Turquia sobreviva a Salve Jorge,
pois com a ida de tanto brasileiro para lá, ao invés de Atatürk, será Morena a
figura mais celebrada de Istambul. Quando, um dia, e não deve demorar, Salve Jorge for exibida na Turquia, espero
que os turcos não riam de nós. Afinal, pelas mãos mágicas de Glória Perez, as
distâncias entre Brasil e Turquia, simplesmente, deixaram de existir. Milagre,
milagre, milagre!
Sávio Siqueira
19 de maio de 2013